Persuasão é diferente de todos os outros livros de Jane Austen. No último romance completo publicado (após sua morte), a escritora traz uma heroína mais madura do que todas outras jovens antes retratadas. Anne tem vinte e sete anos e já está beirando a idade em que uma mulher se tornava (na época) solteirona. E essa maturidade da personagem é retratada pela escritora não só na mudança de ponto de vista em relação ao casamento, após uma experiência lamentosa, mas também em como a personagem se comporta em relação ao que sente — ela se cala.
Em Orgulho e Preconceito (seu primeiro livro publicado), e até em Emma (último livro escrito antes de Persuasão), os diálogos sinceros ou ambíguos são essenciais para compreendermos a narrativa, são (enormes blocos de texto que contam) a própria história. E além, a transparência e a disponibilidade de conversar muitas vezes é mostrada como uma qualidade dos personagens. A dificuldade de Darcy em participar de uma festa foi o estopim para uma série de mal entendidos que fizeram Elisabeth detestá-lo, e a mesma coisa aconteceu com Jane, que pouco podia contar a Emma. Por outro lado, o desembaraço de Frank Churchill foi motivo suficiente para fazer ele ser amado e perdoado por todos da cidade.
Em Persuasão, Anne entende que causou grande decepção a Frederic e não se sente na posição de lhe dizer que se arrependeu. Ao contrário das obras anteriores, temos uma heroína que muito pensa e anseia mas pouco age. Na primeira vez que os dois se encontram, após oito anos de ruptura de noivado, não trocaram uma palavra entre si. “Seu olhar cruzou rapidamente com o do Capitão Wentworth, uma inclinação de cabeça, uma reverência; ela ouviu a voz dele; ele falou com Mary, disse tudo o que seria adequado, disse algo às moças Musgrove, o bastante para marcar uma rápida passagem; a sala parecia cheia, cheia de pessoas e vozes, mas em poucos instantes tudo terminou.”

Até mesmo a declaração de amor feita por Frederic a Anne não é dita em um diálogo, mas sim através de uma carta que ele deixa sobre a mesa antes de sair da sala dos Musgrove. “Não posso mais ouvir em silêncio. Devo falar-lhe com os meios que estão ao meu alcance.” Ele fala usando a palavra escrita, porque há uma barreira emocional entre os personagens.
Persuasão da Netflix só precisava acertar em uma coisa, mas a barreira emocional que mantinha o conflito da história até o fim foi destruída desde o início, de forma que não há motivos para o filme existir. Em vez de um roteiro que transmitisse a distância, a dúvida e a ansiedade entre os dois personagens, fizeram uma Anne com incontinência verbal e um Frederic que diz “não há ninguém como você. E está claro para mim que quero você na minha vida, da forma que for”, ao mesmo tempo em que pede para serem amigos. Não faz sentido.
O filme também tem muitos outros problemas: como quando escolhe adaptar para uma linguagem de internet, uma história que se passa na época e no lugar originais; ou quando usa um discurso cínico ao apresentar os personagens da família, numa tentativa (vergonhosa) de fazer Fleabag sem Phoebe Waller-Bridge; e mais outras mudanças que deixaram pontas soltas na história — primo Elliot ficaria horrorizado de se casar com Penélope!

Tivesse tudo isso acontecido e ainda houvesse uma trama, aí sim, seria uma comédia romântica inspirada em Jane Austen, como o maravilhoso As patricinhas de Beverly Hills (1995). Mas do jeito que foi, com a heroína perdendo a própria essência, é má fé. É qualquer coisa com rótulo de Persuasão.
Na boa, Netflix, tire daqui esse filme mequetrefe! Como assinante, me sinto ludibriada. Só não desejo desver porque preciso me lembrar para não assistir outra vez.
Imagens: Reprodução da Netflix
Um comentário em “Netflix, leve seu Persuasão de volta porque não dá para engolir.”