Prefiro não

Quase todos os homens são escravos porque não se atrevem a pronunciar a palavra não

1.

Passei a minha leitura de abril, que foi terminada em maio, conhecendo mais sobre Bartleby e companhia — uma coleção de escritores do não. No livro, Enrique Vila-Matas conta, de forma curta e bem humorada, as histórias de escritores consagrados, desconhecidos e inventados, que abdicaram do ofício por diversos motivos.

Há aquele que escreve apenas poemas de um verso, enrola o papel e fuma, e o que escreveu por toda vida mas, ao enviuvar, renega a obra completa. Um acredita que suas ideias são copiadas por ninguém menos do que Saramago e outro que escolhe o isolamento social e se priva até da arte, sendo ela uma forma de ligação entre os homens. Mas de todos, o que eu me identifiquei foi o francês que, dentre os motivos para não escrever, listou:

— Porque me parece que o público tem um mau gosto insuperável e sede de difamação.

— Porque se é instado a trabalhar pela mesma razão que, quando assomamos à janela, desejamos ver passar pelas ruas os macacos e os domadores de ursos.

Para quê se expôr à avaliação de trouxas quando se pode passar o tempo de modo mais divertido?

2.

Na última festa de família, dois dentre os sete irmãos faltaram. Mas só me importa te contar sobre a senhora que, na verdade, surpreenderia a todos se tivesse ido, porque é costume seu evitar essas reuniões. Ela disse à irmã (mãe da aniversariante) que não poderia ir porque não dirige à noite — o que eu achei genial pela simplicidade e sagacidade da desculpa: 1) A irmã apartada já está há tanto tempo longe que ninguém pode confirmar se ela realmente tem algum problema que a impeça de enxergar bem no escuro; 2) Como era uma questão de saúde, nem mesmo a mãe da festa teve vergonha de explicar o motivo aos convidados, sorria satisfeita dizendo “ah, ela não veio porque não dirige à noite”.

3.

Domingo é o dia que eu fico em casa para organizar a minha semana, e é também quando Pepe sofre banho e cuidados com a higiene. Como ele já estava com os pêlos da orelha embolando, comecei desembaraçando as madeixas, depois segui para limpar o excesso de cera do ouvido e me empolguei para cortar as unhas. Tudo estava indo de forma tranquila — ele não via direito o que eu estava fazendo — eu ia aparando pouco e devagar, pata a pata, até que não.

Uma das coisas que mais gosto na personalidade de Pepe é que ele decide até onde vai os meus direitos como humana. Sim, sou eu que alimento, que provenho cama acochada e ar condicionado, mas se ele se retar, eu não posso cortar as duas unhas próximas do machucado da pata direita. Resmunga, puxa ela pra si e olha como quem está avisando: eu vou te morder.

4.

Há algum tempo já antecipava viver num mundo assim, num mundo sem Rita Lee. É justamente o mal do ansioso, se torturar e viver várias vezes o medo, até que não haja mais o que fazer (ou ele se torna realidade ou é superado). Ela já estava debilitada, recém saída de internação, mas não posso dizer consegui me preparar psicologicamente para o acontecimento. Senti choque, luto e ainda choro como se tivesse sido pega de surpresa.

Foi minha mãe quem me apresentou à sua música. Nosso DVD do acústico MTV tocava todo fim de semana e a gente cantarolava Desculpe o Auê pela casa que nem Paula Toller, fazendo o backing vocal. Eu me apaixonei por suas composições antes de conhecer a sua personalidade, e só mais velha fui entender a importância de Rita na sociedade brasileira. Ela não tinha medo de fazer o que gostava, falava o que pensava, não ligava para o que os outros diziam. Foi mulher de verdade enquanto xingava suas insatisfações e cantava sobre o amor.

Rita sabia dizer não, exercitava a sua vontade de uma forma inspiradora. Mais do que uma heroína, Rita para mim é um sonho.

5.

Como um exercício contra a minha escravidão, resolvi que não mais darei bom-dia aos velhos tarados que me observam caminhar pelo condomínio às manhãs. Passarei com a minha melhor cara de nojo, protegida por meus óculos escuros e fones com música, ignorando os olhares e sorrisos. Não vou mais deixar de fazer meu exercício para evitar o desconforto, vou devolver o desconforto para quem me impôs — sim, eu evitava caminha, a bichinha.

Minha terapeuta aprovaria.

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