Longevidade

1.

Eu sinto falta de sentar em um café sem compromisso e ficar observando as pessoas passarem. Costumava fazer muito isso A.P.¹ mas agora sinto cada vez menos vontade de sair de casa e me arrasto apenas quando preciso, principalmente porque moro num interior a uma hora de distância de gente querida. 

Nessa semana tive a oportunidade de repetir a indulgência — fomos prestigiar a apresentação de um amigo e dar seu abraço de aniversário — então combinamos de descer na hora do almoço e trabalhar num café à tarde, até a hora do evento. 

Passei boas horas analisando estilos, comportamentos, alturas e bonitezas, nos intervalos do trabalho. Fiquei encantada principalmente com uma jovem que devia ter uns cinquenta anos, de dreads dourados, vestido cor de camelo e tênis branco. Quando ela chegou abraçou tão bem um senhor barbudo, de óculos pink presos no pescoço e argola prata na orelha esquerda, que senti vontade de sentar com eles. Queria participar daquela gente. Mais tarde uma senhora de blusa e cabelos azuis passou do lado e ganhou o mesmo abraço. Que pessoa gentil e calma, me deu vontade de ser assim.

2.

Esses dias em que minha avó estava internada no hospital me fizeram querer voltar a escrever e a tocar teclado, coisas que aprendi com ela. Sinto vontade de contar sua história em um livro, para guardar todas as lembranças que tenho dela, e de tocar suas músicas preferidas — como o forró de Gil, Esperando na janela. 

Estou trabalhando isso dentro de mim porque não tenho muita coragem. Ela é grande parte de quem eu sou, me criou quando criança e é alguém por quem eu tenho muita admiração — uma ídola. Mexer em suas heranças me parece errado.

3.

Meu avô era engenheiro de estradas e gostava de construir objetos. Quando eu era criança, lembro de ele fazer dois balanços (um para mim e outro para a minha irmã) nas goiabeiras do quintal de sua casa, fez um gancho para arrancar as goiabas, quis instalar um interruptor do lado da minha cama porque eu tinha medo de levantar para desligar a luz do quarto antes de dormir — mas eu, envergonhada, disse que não precisava. Se estivesse vivo com certeza inventaria um coletor higiênico de cocôs de Pepe para não ter que se agachar enquanto limpava o jardim.

4.

Uma das maiores pesquisas em felicidade do mundo, o estudo “What are the secrets to a happy life”, fala que não nutrir amizades e nem laços sociais além das relações tradicionais que já temos é equivalente a fumar 15 cigarros por dia. 

Dá pra entender o que isso quer dizer, encontrar os amigos meio que faz uma limpeza em nosso pulmão, a gente respira mais leve. Devem ser as risadas e os desabafos.

Tive dois encontros com amigos nessa semana e já me sinto um pouco melhor. Além do já citado acima, o outro foi um café da manhã aqui em casa mesmo, com banana frita e cappuccino que me deixaram feliz só de preparar, mas foram bem acompanhados com um relato de viagem pela Europa, coisa que eu não vou poder fazer tão cedo por causa de Luna.

5.

Minha avó já não tem muitos amigos vivos e nenhum familiar direto além dos seus três filhos e seis netos. Com o problema do coração, ela se cansa com muita facilidade e não faz caminhadas mais longas do que o percuso do quarto para a sala e depois para a copa para fazer as refeições. Ela não consegue mais ir nos aniversários das amigas da vizinhança, por exemplo, tem sempre que receber as visitas em casa.

No dia que saiu do hospital três netos e duas filhas vieram lhe acomodar e cuidar de distrair a cabeça da veia que se culpa porque está dando trabalho para todo mundo. Uma querida que exala amor.


¹ Antes da pandemia

Prefiro não

Quase todos os homens são escravos porque não se atrevem a pronunciar a palavra não

1.

Passei a minha leitura de abril, que foi terminada em maio, conhecendo mais sobre Bartleby e companhia — uma coleção de escritores do não. No livro, Enrique Vila-Matas conta, de forma curta e bem humorada, as histórias de escritores consagrados, desconhecidos e inventados, que abdicaram do ofício por diversos motivos.

Há aquele que escreve apenas poemas de um verso, enrola o papel e fuma, e o que escreveu por toda vida mas, ao enviuvar, renega a obra completa. Um acredita que suas ideias são copiadas por ninguém menos do que Saramago e outro que escolhe o isolamento social e se priva até da arte, sendo ela uma forma de ligação entre os homens. Mas de todos, o que eu me identifiquei foi o francês que, dentre os motivos para não escrever, listou:

— Porque me parece que o público tem um mau gosto insuperável e sede de difamação.

— Porque se é instado a trabalhar pela mesma razão que, quando assomamos à janela, desejamos ver passar pelas ruas os macacos e os domadores de ursos.

Para quê se expôr à avaliação de trouxas quando se pode passar o tempo de modo mais divertido?

2.

Na última festa de família, dois dentre os sete irmãos faltaram. Mas só me importa te contar sobre a senhora que, na verdade, surpreenderia a todos se tivesse ido, porque é costume seu evitar essas reuniões. Ela disse à irmã (mãe da aniversariante) que não poderia ir porque não dirige à noite — o que eu achei genial pela simplicidade e sagacidade da desculpa: 1) A irmã apartada já está há tanto tempo longe que ninguém pode confirmar se ela realmente tem algum problema que a impeça de enxergar bem no escuro; 2) Como era uma questão de saúde, nem mesmo a mãe da festa teve vergonha de explicar o motivo aos convidados, sorria satisfeita dizendo “ah, ela não veio porque não dirige à noite”.

3.

Domingo é o dia que eu fico em casa para organizar a minha semana, e é também quando Pepe sofre banho e cuidados com a higiene. Como ele já estava com os pêlos da orelha embolando, comecei desembaraçando as madeixas, depois segui para limpar o excesso de cera do ouvido e me empolguei para cortar as unhas. Tudo estava indo de forma tranquila — ele não via direito o que eu estava fazendo — eu ia aparando pouco e devagar, pata a pata, até que não.

Uma das coisas que mais gosto na personalidade de Pepe é que ele decide até onde vai os meus direitos como humana. Sim, sou eu que alimento, que provenho cama acochada e ar condicionado, mas se ele se retar, eu não posso cortar as duas unhas próximas do machucado da pata direita. Resmunga, puxa ela pra si e olha como quem está avisando: eu vou te morder.

4.

Há algum tempo já antecipava viver num mundo assim, num mundo sem Rita Lee. É justamente o mal do ansioso, se torturar e viver várias vezes o medo, até que não haja mais o que fazer (ou ele se torna realidade ou é superado). Ela já estava debilitada, recém saída de internação, mas não posso dizer consegui me preparar psicologicamente para o acontecimento. Senti choque, luto e ainda choro como se tivesse sido pega de surpresa.

Foi minha mãe quem me apresentou à sua música. Nosso DVD do acústico MTV tocava todo fim de semana e a gente cantarolava Desculpe o Auê pela casa que nem Paula Toller, fazendo o backing vocal. Eu me apaixonei por suas composições antes de conhecer a sua personalidade, e só mais velha fui entender a importância de Rita na sociedade brasileira. Ela não tinha medo de fazer o que gostava, falava o que pensava, não ligava para o que os outros diziam. Foi mulher de verdade enquanto xingava suas insatisfações e cantava sobre o amor.

Rita sabia dizer não, exercitava a sua vontade de uma forma inspiradora. Mais do que uma heroína, Rita para mim é um sonho.

5.

Como um exercício contra a minha escravidão, resolvi que não mais darei bom-dia aos velhos tarados que me observam caminhar pelo condomínio às manhãs. Passarei com a minha melhor cara de nojo, protegida por meus óculos escuros e fones com música, ignorando os olhares e sorrisos. Não vou mais deixar de fazer meu exercício para evitar o desconforto, vou devolver o desconforto para quem me impôs — sim, eu evitava caminha, a bichinha.

Minha terapeuta aprovaria.

Aquilo ali é um raio de sol?

1.

Fiz a primeira avaliação de bioimpedância um mês depois de ter começado minha reeducação alimentar. Não tenho como comparar se perdi algum percentual de gordura do meu corpo nesse tempo, mas o tom de voz da fisioterapeuta quando leu as porcentagens na balança deu a dica. Foi de uma surpresa positiva meio pontinha de inveja, que para mim serviu como um sinal de que eu estava fazendo alguma coisa certa.

Isso é uma novidade na minha vida — eu achar que estou fazendo a coisa certa — ainda que sob a avaliação de outra pessoa.

É que não é difícil a boa opinião alheia quando se vive em função de ser aprovado. Depois de alguns anos de prática, você acerta o tempo todo. Mas isso nem sempre significa que será feliz. O difícil mesmo é saber o que, dentre tantas vontades de ser, é genuíno seu e não projeção dos outros. Quando você sabe, e isso dá certo, é como se o sol saísse de trás da nuvem.

Nos últimos anos eu tenho feito tudo errado, como que Saturno vivesse em eterno retorno e eu já vou fazer 34. Chegando aos 29, percebi que o caminho que eu tinha escolhido e suado não levava aonde eu realmente queria ir, e até hoje não tive a coragem de mudar de rota. O medo de não ganhar dinheiro, de ser reprovada pela senhora minha mãe, de ser ruim no que me propor a fazer e dessa nova trilha me levar para lugar nenhum me deixa estacionada.

Então, ter uma meta tipo distração e me saber estar chegando cada dia mais próximo dela, mesmo que a minha meta de vida continue em suspenso, fez eu sentir a sensação ilusória de que bateu por aqui um raio de sol.

2.

Poucas coisas causam felicidade instantânea quanto uma mordida de bolo de chocolate amargo seguida de um gole de café com leite. É uma explosão. E se você estiver sentada na cafeteria de uma livraria, então, é uma bomba atômica.

POV: Você chegou na livraria, folheou os livros que te interessaram, pegou um para ler o primeiro capítulo, sentou na mesa mais escondida e fez o seu pedido. A torta e o café chegaram logo depois que o narrador fez uma tirada engraçada, deixando você com vontade de levar o livro para casa. Com o canto de boca arqueado, rindo sozinha por dentro, você dá a mordida e toma o gole. Pronto, pode acabar o mundo.

3.

Ultimamente tenho visto muitos vídeos de viagens por Tokyo, Kyoto e outras cidades que não sei o nome, produzidos por um casal japonês criativo. Os vídeos não mostram os rostos de ninguém, só às vezes vemos o perfil dos dois de longe. Ela tem um cabelo liso e curto e ele usa rabo de cavalo e cavanhaque, tipo samurai. Se alguém os visse andando juntos na rua, reconheceria, mas não separados. Eles fazem parte de uma tribo esquisita que gosta de preto e roupas largas, e acreditam que saias não são coisa de gênero — me identifico.

A vida deles é repleta de museus, lojas de antiguidades, restaurantes japoneses, cafés e outros lugares sempre tão limpos e bonitos, que passo horas inebriada no desejo e no prazer de vivenciar aquela realidade. Aquela estética Wes Anderson meets Japandi me engoliu e é ali onde eu quero morar.

4.

Tive que me consultar com uma médica de clínica geral para uma nova solicitação de terapia, para comprovar ao plano que ainda preciso de tratamento e, nesses três anos, foi a primeira vez que alguém me perguntou sobre depressão. A ficha caiu devagar porque foi uma pergunta velada: “mais algum episódio de depressão em sua família?”; e aquilo me fez parar um pouco. É verdade… eu tive depressão. É verdade… se eu não cuidar de mim, corro risco de voltar ao buraco. É verdade…

5.

O que devo fazer para viver feliz?

Ouvi essa pergunta enquanto procrastinava o trabalho no Youtube, assistindo a minha atriz coreana favorita responder a comentários da internet. Ela me pareceu tão legal e resolvida. Fiquei tentando pensar no que eu mesma deveria fazer para viver feliz e só me veio esse textinho de ideias bobas. 

Deixar isso aqui inteligível me deixaria feliz. Se ele fosse um pouco engraçado, eu ganharia bônus. Se alguém o validasse com um like, surgiriam uns raios de sol detrás do computador e eu daria uma risadinha imaginando se conto ou não vantagem na terapia da próxima quinta-feira.

Vandinha: mais uma frustração adicionada à pilha de frustrações netflixianas

Quem assistiu o primeiro A Família Addams, de 1991, — e cresceu o revendo na Sessão da Tarde — não pode se conformar com uma Wandinha. Assisti à série até o fim, mas sempre me queixando de que era ruim. A Netflix tem estragado as coisas assim (não vou nem tocar no assunto Persuasão), criando histórias fáceis e pegajosas, contado com a nossa falta de coisa mais importante para fazer ou com a necessidade de desanuviar.

As pessoas com quem conversei não se importaram muito. Acharam a história legal, a atriz muito boa e a dança, o ponto alto (!!!) da série. Eu achei a história cheia de buracos, pouco humor ácido realmente engraçado, uma atuação de Jenna Ortega muitas vezes forçada e uma dança sem grandes emoções (por favor, lembrem-se disso). O ponto alto da série, pra mim, foi a descoberta de quem era o monstro, apesar da volta que demos e dos buracos que pulamos para chegar lá.

[Aviso: A PARTIR DAQUI CONTÉM SPOILERS]

Eu gostei da Vandinha e amei a relação dela com Enid, Eugene, Xavier, Bianca e Larissa – foi isso o que me carregou até o fim e criou uma base para ser desenvolver as aventuras das próximas temporadas — mas fiquei muito confusa com o desenvolvimento da trama principal e dos personagens antagônicos. Como explicar que o Tyler do picnic à meia-noite na tumba de Murray McArthur é o mesmo Tyler após a descoberta da identidade do monstro na delegacia? TDI? E a participação de Cristina Ricci como vilã? Porque foi apenas uma participação, ela sumiu tão rápido e tão leve quanto surgiu, assustando menos do que fazendo rir.

Afe. Escrevo esse texto apenas para deixar registrado que tive de adicionar mais uma frustração à pilha de frustrações netflixianas. Como consolo — sugiro também para quem se sentir da mesma forma — tentarei esquecer essas quase oito horas com os filmes Addams (de humor ácido e mórbidos de verdade) de Berry Sonnerfeld, A Família Addams e A família Addams 2.

Bolinha

Bolinha já tinha cento e nove anos completamente vividos com a sua família desde o nascimento. Foi o filho de Belinha, uma doce poodle toy que viveu até os cento e dezenove, muitíssimo amada na família, assim como o filhote.

Talvez porque fosse menino, Bolinha teve desde pequeno suas vontades realizadas. Todas as manhãs, latia pedindo para sair de casa e lhe colocavam para brincar no jardim. Quando se reuniam para o café da manhã lhe davam um pedaço de bolo, biscoito ou queijo, e assim ele aprendeu a pedir por comida. À noite, quando chorava para subir na cama, quem estivesse passando lhe carregava e lhe deitava no colchão macio. Era mais danado do que a própria mãe e aprendeu rápido a conseguir tais favores com uma ou duas rosnadas.

Mas com o avanço da idade chegaram também as dores no corpo e os pedidos de Bolinha se tornaram cada vez mais frequentes. Em casa passou a ter fama de rabugento. O que antes subia sem dificuldades, então já não tinha mais forças para escalar. Às vezes passava minutos resmungando até que alguém lhe carregasse e colocasse em cima do sofá.

A paciência de Bolinha também estava encurtando. Agora achava que os outros lhe tinham obrigação, quando antes usava de sedução e encantamento para fazer agirem em seu benefício. Se irritava com a dificuldade de realizar coisas simples e, do nada, começava a uivar. Uma zoadeira horrível tomava conta da casa, todo mundo corria tentando fazer Bolinha se calar. As vezes só acertavam o que ele queria depois de duas, três tentativas frustradas.

Certo dia, enquanto fazia a sesta após almoçar um pote de arroz e frango desfiado, o grupo de amigos do irmão mais velho chegou gritando dentro de casa, carregando um cheiro forte até para o nariz velho de Bolinha. Atordoado, ele começou a resmungar, mas ninguém lhe ouvia.

Mas de novo isso? Unh, unh, unnnh.

Fim de semana sim, fim de semana não, isso? Unnnnh.

Eu já não aguentam mais, não tenho mais idade para essa bagunça. Meus nervos, palpitações, espasmos por todo o corpo. Não consigo fugir dessa loucura. Cainnnnn.

Bolinha não conseguia atenção. Ninguém se importava com seus uivos e choros. Até sua irmã preferida aparecer lá no fim do corredor. Bolinha levantou com dificuldade e foi caminhando torto e devagar em direção ao quarto da garota.

Uuuunh, Gabriela. Aqui. Me pega aqui. Me pega aqui. Unh, unh, unnnh.

Surda! Eu vou ter que andar até lá. Unh, unh, Gabriela!

Não feche a porta, menina. Tomara que ela não feche a porta. Ei, me leva com você. Unh, unh, uuunnnh.

Na entrada do cômodo, Bolinha olhou para a humana com olhos esbugalhados como quem pedia socorro. Gabriela o tomou nos braços e o carregou próximo ao peito. Bolinha tremia.

Lambida, lambida, lambida, lambida.

Obrigado, Gabriela, obrigado.

Lambida, lambida. Me coloca ali em cima da sua cama?

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A sensação de estar completo

Acredito que muitas coisas no mundo podem nos fazer sentir completos, mas poucas vezes nos sentimos assim em nossas vidas. Depois que fiz trinta anos, volta e meia alguém vem me dizer que filho traz esse sentimento de completude. Eu acredito, mas não quero provar agora. Em vez disso, tive a sorte de experimentar essa sensação, após uma experiência por mim muito antecipada: o show de Corinne Bailey Rae em BH.

Ao voltar a pé do Sesc Palladium para o hotel, nas ruas iluminadas e vazias de carro, senti como se estivesse completamente preenchida de alegria e não consegui me segurar. Cantava, pulava, corria, sorria sozinha, enquanto os meus colegas de audiência que também caminhavam me olhavam esquisito e o meu companheiro de viagem ria da situação. Por alguns minutos — acho que até eu conseguir dormir — me senti assim, completa.

Enquanto eu revivia as tiradas engraçadas de Corinne ou me preocupava com a sua falta de reserva em descer do palco e caminhar próximo a fãs sedentos. Enquanto eu revivia trechos da música que ela cantava com sua voz perfeita e espalhava alegria, como se enviasse boas energias para o público, senti como se eu fizesse fotossíntese. Enquanto eu lembrava que seus filhos (dois meninos com menos de dez anos) assistiram ao show nas duas cadeiras ao meu lado com a avó, eu sorria e sentia meu coração aquecer. A sensação de completude durou uma noite e deixou um gostinho doce na memória.

Até o início do show, eu achava que qualquer coisa podia dar errado e que eu não conseguiria ir. Ou o avião iria cair; ou a gente seria sequestrado por se meter num lugar desconhecido na cidade; ou eu teria uma crise alérgica que me obrigaria a ir ao hospital uma hora antes do show começar. Coisas de uma mente ansiosa e inventiva. Mas, contrariando todas as expectativas, tudo deu errado e eu me vi sentada bem na frente a poucos metros do palco.

Tem sonhos que a gente nunca acredita que poderia realizar e quando a gente realiza, sente como se não precisasse de mais nada. É como se estivéssemos completos. Eu posso provar.

Netflix, leve seu Persuasão de volta porque não dá para engolir.

Persuasão é diferente de todos os outros livros de Jane Austen. No último romance completo publicado (após sua morte), a escritora traz uma heroína mais madura do que todas outras jovens antes retratadas. Anne tem vinte e sete anos e já está beirando a idade em que uma mulher se tornava (na época) solteirona. E essa maturidade da personagem é retratada pela escritora não só na mudança de ponto de vista em relação ao casamento, após uma experiência lamentosa, mas também em como a personagem se comporta em relação ao que sente — ela se cala.

Em Orgulho e Preconceito (seu primeiro livro publicado), e até em Emma (último livro escrito antes de Persuasão), os diálogos sinceros ou ambíguos são essenciais para compreendermos a narrativa, são (enormes blocos de texto que contam) a própria história. E além, a transparência e a disponibilidade de conversar muitas vezes é mostrada como uma qualidade dos personagens. A dificuldade de Darcy em participar de uma festa foi o estopim para uma série de mal entendidos que fizeram Elisabeth detestá-lo, e a mesma coisa aconteceu com Jane, que pouco podia contar a Emma. Por outro lado, o desembaraço de Frank Churchill foi motivo suficiente para fazer ele ser amado e perdoado por todos da cidade.

Em Persuasão, Anne entende que causou grande decepção a Frederic e não se sente na posição de lhe dizer que se arrependeu. Ao contrário das obras anteriores, temos uma heroína que muito pensa e anseia mas pouco age. Na primeira vez que os dois se encontram, após oito anos de ruptura de noivado, não trocaram uma palavra entre si. “Seu olhar cruzou rapidamente com o do Capitão Wentworth, uma inclinação de cabeça, uma reverência; ela ouviu a voz dele; ele falou com Mary, disse tudo o que seria adequado, disse algo às moças Musgrove, o bastante para marcar uma rápida passagem; a sala parecia cheia, cheia de pessoas e vozes, mas em poucos instantes tudo terminou.”

Até mesmo a declaração de amor feita por Frederic a Anne não é dita em um diálogo, mas sim através de uma carta que ele deixa sobre a mesa antes de sair da sala dos Musgrove. “Não posso mais ouvir em silêncio. Devo falar-lhe com os meios que estão ao meu alcance.” Ele fala usando a palavra escrita, porque há uma barreira emocional entre os personagens.

Persuasão da Netflix só precisava acertar em uma coisa, mas a barreira emocional que mantinha o conflito da história até o fim foi destruída desde o início, de forma que não há motivos para o filme existir. Em vez de um roteiro que transmitisse a distância, a dúvida e a ansiedade entre os dois personagens, fizeram uma Anne com incontinência verbal e um Frederic que diz “não há ninguém como você. E está claro para mim que quero você na minha vida, da forma que for”, ao mesmo tempo em que pede para serem amigos. Não faz sentido.

O filme também tem muitos outros problemas: como quando escolhe adaptar para uma linguagem de internet, uma história que se passa na época e no lugar originais; ou quando usa um discurso cínico ao apresentar os personagens da família, numa tentativa (vergonhosa) de fazer Fleabag sem Phoebe Waller-Bridge; e mais outras mudanças que deixaram pontas soltas na história — primo Elliot ficaria horrorizado de se casar com Penélope!

Tivesse tudo isso acontecido e ainda houvesse uma trama, aí sim, seria uma comédia romântica inspirada em Jane Austen, como o maravilhoso As patricinhas de Beverly Hills (1995). Mas do jeito que foi, com a heroína perdendo a própria essência, é má fé. É qualquer coisa com rótulo de Persuasão.

Na boa, Netflix, tire daqui esse filme mequetrefe! Como assinante, me sinto ludibriada. Só não desejo desver porque preciso me lembrar para não assistir outra vez.


Imagens: Reprodução da Netflix

Para quem quer se perder em doramas

Desde abril me meti num novo mundo do qual não quero sair, o mundo dos doramas (dramas coreanos). Em busca de evitar lidar com os meus problemas, me refugiei na busca por séries de 16 episódios que me impossibilitem de pensar em outras coisas. Já assisti um número obsceno de produções — fora as larguei no meio do caminho porque não cumpriram com a sua função — em sites de streaming originais, piratex ou VPN, em português, inglês e até coreano — porque às vezes o vício é tão forte que você não suporta esperar sair a legenda, você precisa saber o que acontece.

Venho então aqui dividir 10 séries que valem a pena assistir, disponíveis em português (na Netflix), para quem estiver, assim como eu, precisando sumir por uns tempos.

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O vôo da guará vermelha

Escrito por Maria Valéria Rezende
AVISO: Contém SPOILERS. Leia por sua conta e risco.

A guará vermelha é uma ave de mangue que tem essa cor porque se alimenta de caranguejo. Mas isso não tem no livro.

No livro tem a história de Rosálio e Irene.

Um peão de obra é seduzido por engano por uma prostituta e paga pelo serviço com histórias.

Rosálio viveu muita coisa antes de encontrar Irene. Coisas que Irene coloca no papel.

Rosálio tem o sonho de aprender a escrever e Irene vai ensinando aos poucos.

Irene precisa das vivências de Rosálio para esquecer a dor do corpo e da alma.

Irene também viveu muita coisa antes de encontrar Rosálio.

Mas quando estão juntos, as cores têm mais intensidade.

Vermelho, Azul, Prata, Dourado, Encarnado, Roxo, Branco, Amarelo, Verde.

A vida de Irene e Rosálio se enche de colorido.

E a vida da gente se enche de sensibilidade.